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Foi com muito orgulho que recebi em mãos o livro de poemas de Miguel Azevedo e a declaração de que influenciei a sua criação. Devaneio Sob Escombros (2014), é o primeiro livro de Miguel, uma produção independente com 53 poemas, editado e impresso pela Editora All Print.

A  produção é um típico livro independente de introdução. A edição é em material modesto, tendo um trabalho visual simples, tradicional. O autor está focado no texto e, inclusive, focado mais na exposição de suas sensações do que na forma. Os poemas em versos livres e brancos (sem métrica fixa ou rima), praticamente sem um trabalho com o espaçamento, com sinais/símbolos na tipologia, é simples, seco e violento. Parece que Miguel quer é expurgar sentimentos como este trecho do poema em prosa A batalha do morto-vivo:

 

Eu quero minha vida, eu quero me sentir vivo. Eu morri já faz cinco anos.

 

E o que Miguel tem a dizer não é bonito, porém é exatamente essa a beleza de sua obra: o vômito, o exorcismo, a fragilidade.  Por mais um dia:

 

 Eu não queria falar sobre isso de novo

Mas esse vazio me consome

(…)

Eu não queria estar condenado para sempre.

Eu queria ser realmente grato pelo que tenho,

Gostaria de sorrir, mas de verdade,

Sem me sentir culpado por não ter vontade.

 

Os poemas buscam sempre expor algo que a vida não deixa exprimir. E essa interdição do dizer não está apenas na opressão, mas também na falta de quem ouvir, e essa não identificação é dolorosa. Em Devaneio Sob Escombros os grandes amigos são o álcool e o cigarro, como em Gregor, não, barata!:

 

Eu já não tenho mais escolha

Vejo-me adulto, já escravizado

Vendendo minha mão de obra,

Vendendo meu trabalho

Por um teto, meia dúzia de cervejas

E um maço de cigarros

 

Vícios que, ironicamente, libertam da vida opressiva do cotidiano, do trabalho regular, das necessidades financeiras diárias, do próprio absurdo da vida em sociedade. Essa é a importância de poetas como Miguel Azevedo, de expor o ridículo e o absurdo da vida que, muitas vezes, por deixarmos de perceber, sedados pelos mais diversos mecanismo da sociedade do espetáculo e do capitalismo hedonista de mercado, só damos conta quando estamos a ponto de explodir (seja a mente, seja uma veia). A derrota, tão presente em Devaneio Sob Escombros, possuia a essência da inconformidade, da revolta e, por consequência, ainda que germinal, da esperança.

Com essa publicação Miguel Azevedo dá um ótimo primeiro passo no mundo da literatura. Embora a obra seja muito monotemática e que algumas palavras pareçam desnecessárias (no intuito de buscar mais condensação, como sugere Ezra Pound), fico com grande expectativa para acompanhar os próximos projetos do autor.

Você pode comprar o livro no site da Editora. Reforço a recomendação e finalizo deixando que o texto fale por sí.

 

Veneno

Olhe para mim

Simule que estou bem.

Aqueça-me, mantenha-me…

 

A única coisa que eu tenho

São meus pesadelos

E um copo de veneno

 

Que me mantém vivo

 

Cachaça e Ritalina

 

Ele arrastava seu casulo no por onde ia.

Escondia-se quando o ameaçavam

E saía na calmaria.

Então, seguia seu caminho por mais um dia.

 

E, assim, fizeram-se a luz, as trevas

A cachaça e a ritalina:

Tudo seguia como ele previa.

 

Hoje em dia, o casulo está vazio:

Não há mais nada, além de memórias,

De uma vida que ousara viver

Uuma existência quase sem porquê.

 

E assim fizeram-se os prédios,

Os carros e o futebol,

A cachaça é a Ritalina.

 

E tudo segue como se previa.

 

Avenida São Carlos

 

Fiquei à deriva

Na Avenida distraída.

Um sonho sem fantasia

Na minha vida.

 

(Enquanto os dois se flertavam)

 

E, na minha antagônica luta,

Eram os ursos famintos

E meu escudo de poesia,

O meu raiar sem o dia.

 

E se fez a Avenida São Carlos

O rapaz de saída,

A garota bonita,

E o sinal da esquina.

 

Enquanto os dois se flertavam,

Na segunda-feira à tarde,

A semana já pesava

Muito mais que a mochila.

 

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