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Eu ainda era um garoto, talvez doze anos, magricela, óculos fundo de garrafa, introspectivo, muito educado e bonzinho. Naquela tarde eu estava com meu Tio Paulo, aquele cara que se foi cedo demais. Era um bar qualquer, com um balcão qualquer de fórmica branca, com um dono de bar sem nenhuma peculiaridade tão amistoso quanto aquelas paredes beges muito comuns na década de 90. Aqueles baleiros bizarros, parecendo ovos de alienígenas, bulbos de plásticos transparentes que eu sempre ficava girando a procura das balas Chitas que, embora eu preferisse sempre as de uva, roxas, ficava ali, vendo quantas chitas de cores diferentes haviam. Meu tio pediu uma cerveja e uma coca-cola pro guri, não, não, é meu sobrinho, é filho do meu irmão, é, filho do Lemão (aquele nome tão secreto, tão desconhecido pra mim: meu pai).

Além da coca-cola ele pegou uma batatinha pra gente, daquelas engorduradas e sebentas de bar, sem rótulo de nada, que devia vir num sacão que alguém subdividia e grampeava em saquinhos transparentes. Não que me importava, não mesmo. Ele me deu mais alguma coisa de presente antes de irmos embora, eu não sei, uma paçoca ou aquele pirulito do Zorro que vinha espetado num palito e grudava nos dentes do fundo. Não sei se ele pagou com o dinheiro dele, porque acabei sacando com o tempo que minha mãe às vezes dava dinheiro para ele sair comigo. Meu Tio Paulo vivia na pendura, de bicos, gastando todo seu dinheiro com “droga”, na época em que droga era um demônio vermelho que cegava e matava as pessoas, que podia ser maconha ou cocaína ou crack… era tudo a mesma coisa.

Tio Paulo era muito bacana, sempre querendo me agradar, como se quisesse substituir meu pai, por ele estar bem longe dali, preso numa cadeia (seu pai tá trabalhando em outra cidade, dizia minha mãe) . Pegou a minha garrafa de coca encheu meu copo e disse: Não deixe o copo ficar vazio. Porquê? Pra não esquentar, embora eu achasse que esse não era o motivo e nem que havia motivo algum, poderia ser pra quem toma cerveja, numa garrafa grande, mas não uma coquinha. Hoje, eu sei. Hoje, aqui neste bar, sozinho, colocando mais cerveja neste copo pela metade. Na época eu não entendi, assim como não entendi quando ele lançou o laço da morte em volta de seu pescoço e foi encontrado em sua casa frio e roxo, balançando sob o caibro da garagem. Não entendi, mas nunca julguei. Não passei a te amar menos, nunca você foi menos constitutivo, menos visceral em mim. As fitas de rock, sabe aquelas fitas velhas de rock, uma sacola cheia da qual você se livrou porque seria internado numa clínica evangélica e você as deixou para mim como se soubesse que não estava jogando nada fora, mas me entregando, me passando uma velha jóia de família, enganando todo mundo, até mesmo Deus e porra… saca… mais um gole. Tem coisas, meu velho tio, que a gente só entende na hora certa. Não importa…

Não importa, esse foi um grande presente, foi melhor do que centenas de pirulitos do Zorro. Hoje é um dia quente e a cerveja nova devolve seu frio ao copo americano. Eu levanto um pouco o copo (a luz deixa claro e translúcido o líquido dourado enquanto gotículas de água se formam na externalidade do vidro): um brinde, meu bom e velho Tio Paulo.

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