Porra, às vezes acho que estou perdendo a vontade de escrever. Pior é que eu penso que se um dia eu parar de escrever, eu não sei, talvez eu me torne o que eu sempre temi. Mas o que eu sempre temi?
Ligo o computador e sua tela radiante ilumina meu rosto na densa escuridão seca do quarto. As paredes têm textura de veludo. Meu rosto oleoso parece fritar sob a radiação do monitor. É claro que meu sonho não era ficar fazendo revisão e tradução de apostilas técnicas, de algum livro científico do tipo “sem finalidade alguma”… mas às vezes cai alguma coisa boa na minha mão. Uma tradução de Quiroga, uma revisão de um poeta iniciante, romântico e perdido. Uma vez um americano maluco, que me pagou generosas doses de uísque, também me pagou uma nota preta pra traduzir alguns poemas do Drummond pra ele. Uma grana preta pra uma tradução que teria apenas um exemplar. Mas o que fode é pegar a tradução de uma merda de manual de DVD. Coisas tão idiotas que eu traduzo até para alemão ou qualquer outro idioma que nunca falei. Mas a gente tem que comer, não é? Comer, pagar internet, o cigarro, o fumo, a pizza. Ah, foda-se…
Saio da frente do computador pra porra da varanda fumar, mas o vizinho da frente tá em casa. Merda, pego uma blusa, saio pelo portão e vou para rua. Uma cerveja no Bar Utopia, esse é sempre o meu lema.
Andando pela rua eu sempre me acalmo… As ruas cinzentas e vazias de São Carlos City… Uma leve chuva molha meus pensamentos. O tempo começa a mudar. Um conto começa a ser escrito na minha cabeça, não podia perder o fio antes de chegar em casa. É sempre assim, quando estou entupido de coisa chata pra fazer é que eu preciso fazer exatamente aquilo que eu não preciso e, paradoxalmente preciso, o essencial: arte.
Pergunto pro Amaral, do outro lado do balcão, como está o dia. Mais ou menos, ele resmunga. Peço para ele uma dose de conhaque para espantar o frio. Dupla. A voz da minha mãe, da minha ex-quase-namorada e de centenas de pessoas começam a ecoar responsabilidades em minha cabeça: o trabalho primeiro, comece e termine, acorde cedo, faça exercícios… Não, não, tripla, Amaral!
Enquanto ele vai buscar o copo eu vou até a porta em busca de uma mesa. Acendo o cigarro. Trago e assopro mirando o céu negro sem nenhuma estrela. A fina garoa toca a pele e seca no calor febril do meu corpo. Volto-me para dentro:
— Aliás, Amaral, esquece o copo, vou levar a garrafa pra casa… eu preciso escrever.
Alheio a toda minha criatividade poética ele dá uma balançadinha de cabeça e pega meu dinheiro. Dou um gole no gargalo da garrafa satisfeito por, mais uma vez, sacanear a vida e deixar tudo pra depois.