Eu voltava da balada a pé. Tinha sido uma pequena grande noite, com muitas risadas e alguns acontecimentos casuísticos. Agora eu estava voltando para casa e já era madrugada. Um pouco cambaleante por causa do álcool. Era tarde e pensava se alguém iria me abordar, se alguém quisesse me roubar? Até onde era possível reagir? Será que a criminalidade na cidade não para de subir mesmo?
Fazia tempo que eu não andava a pé pela madrugada. Mentira, não fazia tanto tempo assim. Mas era uma noite em que eu estava calmo, e apesar do tempo seco, eu serenava. Via meu cabelo comprido chacoalhando no desenho da minha sombra no chão. Lembrei de quando era criança e ficava sempre reparando, intrigado, o desenho da sombra sempre grudado em meus pés. Aquele eu ao contrário, que desaparecia e surgia por trás, novamente, conforme eu ultrapassava os postes de luz. Eu parecia uma cebola, perdendo uma camada a cada sombra que passava.
Eu estava me sentindo bem, cabelos soltos, a camisa de cima aberta, balançando com os passos quase tortos. Parecia que eu estava saindo de um palquinho da universidade, dez anos atrás. Bem menos louco, mais equilibrado. Mas parece que alguns dos demônios que habitavam meu peito ainda eram os mesmos. Um certo medo de que tudo poderia acabar de repente, como se o horizonte desabasse, feito cortina pintada, revelando a grande farsa final da vida.
Saquei um do bolso e acendi em plena marginal. Foda-se, não vão me encher o saco por causa disso, né? Sou quase branco, sou classe média. Deixem-me usufruir dos benefícios de classe média… pelo menos não vou fingir que mereço, como todo bom e sacana classe média.
O clima de nostálgico me remete ainda mais ao passado. Lembro daquela noite em que encontrei meu pai na esquina, com a camisa aberta até o meio do peito, os cabelos enrolados e bagunçados, um cigarro nervoso nas mãos, as correntes douradas e largas ao redor do pescoço. Nessa época o havia encontrado algumas vezes, desde que ele havia saido da prisão, mas naquele dia ele estava diferente. Estava transtornado, estava numa outra vibe. Só me percebeu depois que o cumprimentei: Oi pai. Apesar de ser apenas um adolescente, fui sacando que ele estava muito chapado. Tentou simular uma alegria ao me ver, perguntou o que eu estava fazendo e eu disse que tava jogando uns fliperamas de luta. Ele me comprou algumas fichas, o que me deixou muito feliz. Entrou e começamos a jogar juntos. Ele meio alucionado, quando mexia os controles movia a máquina junto. A molecada começou a ficar em volta, olhando o cara malucão. Então do nada ele foi-se embora. Foi tudo muito confuso. Fiquei com uma certa vergonha e uma certa perplexidade, nem positiva nem negativa.
Na calçada avistei de longe um grupo de cachorros que pulavam sobre o pequeno muro de uma casa velha e latiam para os carros, rasgavam lixos. Era uma matilha demarcando seu território pela força. Logo me avistaram e começaram a latir. Virei-me para atravessar a rua e então desisti. Não, eu iria passar bem entre eles. Meu peito queimou. Eu iria seguir o meu caminho. Eles latiram e correram na minha direção. Seguindo firme eles recuaram, três saltaram para dentro do quintal da casa e continuaram vociferando. Um mais corajoso apenas recostou-se na parede. Um preto, que parecia o líder circundou-me até as costas mas mantendo distância. Não tirei os olhos dele um segundo, mas atento contra um ataque por trás. Não me movi um milímetro do meu caminho. Senti vontade de latir e acordar a vizinhança.
Então a adrenalina passou, respirei buscando reencontrar a paz. Um cara ansioso como eu, cafeína, sempre correndo atrás da vida. Sempre em busca do momento seguinte, sempre um passo adiante de onde deveria estar. Sempre perdendo para ganhar. Sempre satisfeito insatisfeito. Querendo mais. Mais. Como um maldito vampiro.
Aquela sombra sob meus pés. Me ligando ao quê? Então quando reparei estava novamente naquela esquina. A casa de fliperamas era um atual açougue, fechado. Parei na esquina atraído por um lindo som de violão, viola e vozes sertanejas. No bar, do outro lado da rua, uma dúzia de pessoas estava sentada numa roda, onde dois caipiras tocavam pagodes de Tião Carreiro & Pardinho e outras modas. Não pude resistir. Cheguei no bar e pedi uma cerveja ao dono, tentando parecer mais sóbrio do que estava. Sentei-me num canto, tentando ser o mais invisível possível e fiquei ali, vidrado, vendo os dedos e vozes vibrando. Foi tardio, mas também me apaixonei pela música de raiz. E aquela cantoria foi fortalecendo meus ossos. Um rapaz, que dizia ter 24 anos, camisa xadrez azul, pegou a viola e desfiou várias modas junto aos caipiras velhos. Emocionados com um jovem amar e continuar aquela tradição.
Paguei a cerveja, precisava descansar. Resolvi passar em frente ao açougue novamente quando ouvi: oi pai! Olhei para trás e vi um guri de 13 anos de idade. Era eu, óculos grossos, magrelo, frágil, olhar curioso. Não sei, talvez estivesse mesmo muito bêbado, mas a situação não me estranhou. Oi filho, eu falei, um pouco surpreso, envergonhado. O que você está fazendo aqui? Ele me disse que estava jogando uns fliperamas de luta. Já era tarde, eu precisava descansar, mas olhei para os lados e respirei. Hei, quer saber, que tal se nós comprássemos várias fichas?