Eu estava em Sampa no bar tomando uma enquanto ele não chegava. O velho Marciano era foda. Era um cara admirável… assim como eu… éramos Gêmeos. Ele gostava quando as frases eram assim. Ambíguas. Era uma espécie de gênio medíocre. Ele era assim, seu melhor amigo na maior parte do tempo, mas podia te abandonar de repente. Não era assim também, ele não te esquecia por algum outro motivo, ele esquecia o mundo, ele saía do mundo e habitava um outro planeta inalcançável. Uma vez estávamos numa balada e eu disse que ia arrumar uma briga com um cara pra depois escrever um conto. Meu camarada fez questão de estar junto só que bebeu tanto que acabou desmaiando antes da briga. Mas quando ainda estávamos nas primeiras cervejas não… uma vez, num bar, ele praticamente avançou sobre um cara porque ele veio tirar satisfação comigo. Se ofendeu mais do que eu mesmo.
Ele era corajoso. Era o cara mais manso do universo e ao mesmo tempo durão. Era um cara ambivalente como a Islândia. Corajoso nesse seu mundo. Dava pra notar porque ele voltava desse lugar como um poeta doido trazendo pensamentos densos mas bonitos, pintando quadros malucos e desenvolvendo novos esquemas filosóficos. Tava sempre botando um som. Você já teve aquele amigo que fica sempre ligado no som de fundo? E era sempre um som da hora e novo, mesmo quando era clássico.. Vinha com um álbum menos conhecido dos Rolling Stones ou um Bruce Dickson e ia até um Tom Zé, Hermeto. Sabe aqueles caras que quando você tá com ele ou a galera toda ta reunida, ele fica procurando o som e quase sempre acha AQUELE som.
Estávamos ali, tomando uma naquele bar paulistano, com um clima até “sofisticado” para dois frequentadores tradicionais do Bar Utopia. O cara já é neurótico e vai morar em São Paulo! Não entendo isso. Talvez quisesse ganhar grana, já que sempre esteve duro. São Paulo me maravilha e dá medo. A esfinge que a todos quer devorar.
Enfim, eu estava em Sampa e toda oportunidade era válida para encontrar o querido Marciano. Ele foi um dos primeiros caras a ficar chamando todos de querido, antes de virar uma mania generalizada. Era amigo pra beber e sair atrás dos rabos-de-saia. Era um grande “pegador” e acabava se tornando uma grande concorrência. Era inteligente e tinha um bom papo como eu, mas tinha pinta de bonitão, o que não era meu caso. Quando falávamos sobre isso ele sempre apontava o dedo pra minha cara e dizia: Ângelo, a gente sempre se sabota. Sempre lembro disso e porra, o Marciano era o cara que mais se sabotava no mundo. Ele conhecia seus defeitos, ainda que nunca conseguira na vida superá-los. No entanto ele ia vivendo, e do seu jeito, ia bem. Afinal, só não vai bem quem não segue do seu jeito.
Estávamos ali, na esquina da Avenida Paraíso, tomando cervejas geladas. Conversamos como se a última vez que tivéssemos nos visto fosse ontem. Mas já fazia tempo. Conversa de amigo velho é assim, metade do tempo se atualizando, a outra metade relembrando histórias antigas. E nesse papo você vai reconhecendo os gestos da pessoa, flagra novos gestos, palavras, manias. E se compara. Um bom amigo é sempre uma referência pra você, tanto daquilo que você quer se aproximar, como daquelas qualidades que você quer se afastar. Lembra da Luciana? Lembra daquela vez da briga hipotética dos filósofos? Lembra aquela vez da sacola de Argyreia? Lembra?… lembrava e o que eu não lembrava voltava a me constituir.
O tempo fica pequeno, as horas passam como minutos.
O bar fechou e prosseguimos uma parte comum do trajeto a pé. Pegamos umas latinhas num posto e e fomos fumando um beck seguindo aquele velho ritual dos bêbados iluminados, como Kerouacs e Ginsbergs. Chegamos ao fim do caminho comum e sentamos numa mureta para matar a breja. Ele já estava no fim das forças. Nunca saquei qual era o problema do Marci, porque ele era um bebedor nato e entusiasta, mas sempre ficava mais louco e baqueado antes de todos. Devia ser os remédios tarja preta que tomava. Eu falava: é isso que fode sua cabeça, esse remédios da porra! E ele dizia: pode ser, mas você também tem a cabeça fodida e não toma nem aspirina, porra! E eu tinha que concordar. Estávamos felizes de nos encontrar e tristes da despedida. Porra, eu gostava muito de morar em São Carlos. Então volta pra lá, mano. Putz é foda, tem a faculdade, mas talvez eu não termine essa também. Você sabe, eu não me prendo nas coisas. Eu sei, respondi, eu devia te dizer o contrário, mas você não deixa de estar errado, viva a liberdade! – fiz num ébrio brinde imaginário e coloquei a mão em seus ombros, com afeto mas também para se equilibrar. Admiro você cara. Você é meu irmão, mas como eu sempre disse, você é mais velho na idade, mas eu sou o irmão mais velho dessaporra. Olha… você ai mais chapado como sempre, eu tô de boa. Poxa cara, não queria tá tão chapado assim, pra conversarmos mais. Amanhã trabalho cedo, to fudido. É cara – bati nas suas costas – a droga que nos mata e consome é o trabalho, saporra. Nos despedimos com um forte abraço. e seguimos caminhos distintos. Fui matando a ponta restante e pensando na vida, já com saudades, não só do Marciano, mas do Rato, do Cobra, do, Danizinho, da Ly, da Fabi e porra, daquela lista tão grande e vasta como aquela cidade colossal e infinita cheia de luzes e movimento em plena madrugada, aquela vida paulistano-pulsante que te faz se sentir familiar e em casa, te propicia o limite e o caos, como os filhos das putas dos meu amigos. Eles sempre foram tudo pra mim.