Há tempos esta história estava na minha cabeça, esperando para ser escrita. É um história real, infelizmente. Não de todo. Tampouco minha memória é confiável. Mas há algo que eu sinto bem real: uma sensação de remorso.
Eu nunca fui o cara do bullying, pelo contrário. Às vezes era a vítima. Só não fui ainda mais, porque tinha gente pior. Eu era apenas mais um magricela um pouco nerd. Falava baixo, não tinha facilidade pra falar olhando nos olhos de quem eu não conhecia direito. Mas tinha pior… tinha o Claudomiro, por exemplo. Que além de fracote e tímido, diziam que era um pouco retardado. Na verdade ele não era, mas essa era a forma carinhosa que ele era chamada pelos fortões.
Eu nunca o conheci muito bem, tinha receio de ficar perto dele e acabar assumindo seu papel. Mas eu gostava do Claudomiro porque quando ele faltava era no meu pé que pegavam. Minha estratégia era ficar amigo de algum valentão e fingir que não ouvia quando me xingavam de quatro-olhos, molenga… Eu me sentia mal quando zuavam o Claudomiro, mas eu não fazia nada e eu sabia que isso me tornava cúmplice.
De qualquer forma, eu não era o cara que ficava “tirando” os outros. Por isso mesmo nunca me esqueci do Flávio. Eu me esqueci de muita gente. Às vezes encontro algumas fotos antigas e mal reconheço dois ou três. Mas eu lembro do Flávio, embora sua imagem pareça meio borrada na minha memória. Lembro do seu rosto apenas mais velho, quando estava gordo e barbudo e eu o encontrava na rua de cima da casa da minha vó.
Mas nesse dia, que não me saiu mais da memória, quando devíamos ter 10 ou 11 anos, sua imagem é quase um buraco, sem forma e sem rosto. Eu lembro que era dia, pouco mais de meio dia, quando as crianças saíam em debanda, gritando, falando, rindo e correndo de volta para suas casas. Lembro que havíamos passado a banca de jornais onde eu comprava gibis e figurinhas, depois da perua do caldo-de-cana e da escolinha das crianças pequenas. Também não me lembro de quem andava do meu lado e gritou: Ow Flavitaaaa! Maria TG!
O que é Maria TG? TG é Tiro de Guerra. Hum. Fiquei tentando entender o que tinha a ver Maria com o Tiro de Guerra, aquele lugar de muros altos, que parecia estar sempre cheio de soldados que na verdade não eram soldados. Como meu tio, que reclamava de acordar cedo, mas dizia que era bom porque tinha dispensa do trabalho. Mas por que Maria TG? Maria TG, as biscatinhas que vão lá no portão fazer chupetinha pros caras.
Eu me dei por satisfeito com a explicação, por mais estranho que parecesse. O que importava é que todo mundo que estava perto de mim estava gritando “Flavita! Maria TG”. Provavelmente outros palavrões que eu não me recordo. Não era a primeira e nem a única vez que isso acontecia. Mas foi a primeira vez que eu gritei “Flavita, mulherzinha!”.
A princípio ele tentou ignorar, mas depois começou a xingar de volta “Vai tomar no seu cú, filho da puta”. Mostrava o dedo do meio e tentava andar mais rápido. Mas nós também aceleravamos o passo, gritando “mulherzinha, bichinha”. No começo eu comecei a gritar pra não ser diferente. Ser diferente era ruim porque te colocava em evidência. Se você não xingava alguém que estava todo mundo xingando, alguém dizia “que que foi, vocês são namoradinhos?”.
Mas depois da segunda vez, eu comecei a sentir um tipo de prazer. Estar junto com o grupo, gritando, fazendo baderna. Uma sensação de pertencimento e equipe (ainda que fosse para humilhar alguém). Alguns garotos que costumavam virar pra esquerda na bifurcação, mudaram o caminho para seguir o cortejo e gritar um pouco mais “Flavitaaaa”. Um garoto, do qual também não me recordo, exceto o fato de que ele era bem baxinho, pegou um flor do chão correu e colocou sobre a cabeça do Flávio. Este virou rapidamente e bateu com sua mochila nas costas do gurizinho, que fez uma careta mas logo sorriu ao ver que todos gargalhavam do seu gesto heróico.
Flávio não chorou, em nenhum momento.
Muitos anos depois passei a ver o Flávio em frente à sua casa, quando eu ia a pé até a casa da minha avó. Já éramos adultos. Ele não me reconheceu, afinal eu era apenas mais um. Mas eu reconheci ele e na hora me lembrei daquele dia fatídico. Senti vergonha, olhei pra baixo, mesmo sabendo que ele não saberia quem eu era. Me senti covarde. Queria poder apagar aquele dia da minha história, mas não podia.
Recentemente minha avó me contou que ele havia morrido. Aquele moço da rua de cima, meio bichana, que andava com umas roupas meio esquisitas. Ela contou uma história estranha de que ele havia sido encontrado morto, no quintal de uma casa, que diziam ser uma zona. Seu corpo estava caído no chão. Vestia uma saia e uma blusinha de mulher. Estava com uma peruca de cabelos longos e loiros e o rosto todo maquiado.Ninguém nunca soube o que aconteceu, tampouco alguém quis saber.
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