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O momento mais feliz do meu dia é quando saio do trabalho. Desde quando piso no trabalho meu único grande objetivo é sair de lá. É como um castigo. Como quando sua mãe lhe proibe de brincar na rua o dia todo. Afinal, quem me pôs de castigo eterno? Foi Deus porque eu sou ateu? Foi o capitalismo porque sou incompetente? Ou foi o acaso porque eu sou um grande azarado?

Azarado eu sempre fui. Eu só ganhei algo duas vezes na vida. As duas foram num bingo da igreja que minha vó frequentava. Eu me lembro de ter ganhado uma camiseta preta que era pequena demais para mim e um cisne branco de porcelana.

(Coisas de porcelana eram brinquedos de adultos que não serviam para brincar, só olhar.)

(E quebrar, se você fosse um azarado como eu.)

Uma vez recebi um e-mail dizendo que eu tinha ganhado uma promoção, que eu estava na etapa final, e ai eu cliquei e cliquei e cliquei e chegou num momento que eu tinha que assinar uma revista pagando com meu cartão de crédito.

Não sei se acredito em sorte ou não. Antigamente a sorte era considerada uma deusa: Fortuna. Hoje em dia é como se sorte fosse nascer rico e azarado ter que trabalhar.

Fico pensando isso tudo porque o caminho do trabalho até em casa eu faço a pé. É longe, mas penso que estou economizando a academia. Setenta minutos é tempo para pensar em bastante coisa. Não é como no trânsito, onde você fica tenso e atento, tudo é dinâmico e perigoso. Já decorei o caminho. São cinco meses. Cinco vezes trinta dá 150 voltas para casa (a ida faço de ônibus). Tenho que descontar os finais de semana, enfim, é por aí. Já contei os quarteirões, os espaços perigosos, os terrenos baldios, os semáforos.

(Tenho uma mania de acelerar ou frear os passos para conseguir chegar sempre no sinal verde, saca? A ideia é nunca ter de ficar parado na esquina com o sinal vermelho. É como perder pontos. Claro, você não pode andar devagar demais a ponto de ser estranho para os demais transeuntes, nem rápido demais que seja corrida. Você não pode parecer estranho! Você está na cidade e todos estão te observando. Já parei antes, fingindo amarrar os sapatos, mas sinto que estou trapaceando. Agora, quando desamarra de verdade, é justo andar um pouco a mais para amarrar no momento estratégico.) Verde ou vermelho, depende apenas da sorte ou a estratégia humana vale de algo? Sempre vamos pensar que vale, mas você já pensou se não? Na mitologia clássica tudo era sorte, destino. Laio botou um prego em cada pé de seu filho recém-nascido e o abandonou para morrer, e o destino fez o guri sobreviver, matar a esfinge e o caralho, matou o pai e casou com a mãe; e tudo era um roteiro escrito pela sorte.

Tenho um amigo que sempre joga na mega sena, loteria e tudo mais. Sempre me chama para participar dos bolões mas eu digo que não tenho sorte. Se eu tivesse sorte para ganhar na mega sena, eu teria sorte o suficiente para que ele ganhasse e me desse uma parte. Como eu sou uma pessoa sem sorte na vida, mesmo ganhando muito dinheiro, talvez perdesse tudo, ou o dinheiro ainda poderia ser a grande desgraça da minha vida, como naquelas histórias onde que se conta que um fulano…

No caminho eu fumo meio baseado. Por isso também a volta para a casa é o momento mais feliz do meu dia. É o momento mais tranquilo. Exceto na esquina da XV de Novembro.

Sempre gostei de caminhar. Não é como no trânsito, no volante. Andar é seguro e a calma me permite abrir a válvula da pressão craniana. Me permito pensar coisas novas e repensar eternamente as coisas velhas. Afinal, a cabeça não para, não tem intervalo, talvez um dia tentar yoga.

Setenta minutos passam devagar quando você anda. Sinto que ganho tempo pois ele parece ser mais comprido. Caminhar dilata o tempo. E aí eu tenho mais tempo pra repensar tudo de novo o que eu penso todo dia. Sei lá, o pensamento não tem fim. O caminho tem.

Mas hoje sorte é uma coisa que tem que se aproveitar, não é destino. Alguém te diz: veja, é uma oportunidade de ouro, aproveite! Talvez seja só uma bobagem, achar que a gente pode aproveitar ou não a sorte. Afinal, qual o problema se fôssemos apenas robozinhos? Pelo menos é assim que eu me sinto indo e voltando todo dia do trabalho. Robô. Mas robô não fica triste, só liga e desliga.

Sorte é quando você quase pisa na merda, como eu fiz agora. Então acho que hoje foi um dia de sorte.

Só que ao desviar da merda eu vejo, ali, no chão, uma nota de dez reais. Ela está lá, a ararinha vermelha com seu bico maroto. Definitivamente é um dia de sorte! A deusa da fortuna me garantiu o caldo de cana do dia. Dez reais, uma garrafa pet de um litro e meio reutilizada, de higiene totalmente duvidosa, que o tiozinho que se chama Jesus vai encher pra mim. O caldo de cana ficou caro. Eu vivo em São Paulo, um mar de cana, e a garapa custa bem mais caro que a Coca-Cola.

Acho que já dependi demais da razão, de agora em diante, quero depender mais da sorte. Talvez eu não seja um azarado, talvez a Fortuna esteja apenas acumulando sorte para mim, para me dar tudinho de uma vez só no fim do ano. E não vai ser dinheiro, vai ser uma coisa bem melhor. Talvez a grande sorte esteja bem perto, bem ali, na esquina com a Rua Antônio Blanco. E se de repente eu virar a esquina e não tiver nada ali, além de carros e ônibus barulhentos e pessoas com sacolas e as mesas daquele bar; eu sei, ela estará um pouco mais a frente, na próxima esquina. Ou na próxima. Sempre.

* Semáforo: Fotografia do Flickr de Fernando Polo, licenciada sob Creative Commons.

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