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A ciência é um empreendimento essencialmente anárquico: o anarquismo teorético é mais humanitário  e mais suscetível de estimular o progresso do que suas alternativas representadas por ordem e lei.
Paul Feyeraband

O anarquismo contribuiu para expor a face totalitária de muitos discursos, como das igrejas, dos parlamentos, das escolas, do masculino, das mídias etc. No entanto, ao longo da história se mostrou muito condescendente com a ciência.

A definição, vinda dos tempos iluministas, permanece até hoje. Trazer luz sobre as trevas, expor a verdade, pensar com a lógica e a razão. Por mais que muitos pensadores já tenham feito críticas a academia, o conhecimento institucionalizado, a universidade, enfim, a ciência; ela ainda é largamente, e de certa forma até inevitavelmente, utilizada e defendida. Opor-se a ciência é colocar-se do lado “místico” ou “religioso”, ou seja, do achismo ou mesmo da ignorância. Quando perguntamos como solucionar os principais problemas do mundo, para qualquer pessoa, de esquerda ou direta, dos radicalismos ao centrismo, a resposta quase sempre é a mesma: Educação.  Quando as pessoas argumentam elas procuram usar argumentos “científicos”, pautados nessa ou naquela pesquisa/teoria/livro. Achamos justo e bom deixar nossas crianças serem educadas em massa pelos governos, pois acreditamos que aprender a ciência é bom. Afinal, quem descobriu a cura das doenças?

Mas a ciência de fato é tão boa e incorruptível assim? Todas as pesquisas são importantes? Quem as financia? Será que a ciência tem trazido realmente tantos avanços assim?

Anarquismo e ciência

O pensamento científico serviu para direcionar diversos pensadores anarquistas no desenvolvimento de suas ideias. Kropotkin é o exemplo mais conhecido, além de outros como geógrafo Élisée Reclus. Criam na ideia de que a ciência deveria ser a baliza de um novo pensamento, rompendo assim com “certo pensamento religioso”. Devemos usar aspas, afinal, Descartes, Galileu e tantos outros eram teístas. Embora a separação entre os saberes da religião e da ciência seja “benéfica”, não é nada difícil perceber que o discurso científico não é tão diferente do discurso religioso e, em alguns casos, pode ser ainda mais autoritário.

O pensamento científico já foi exposto e muito bem criticado por Paul Feyerabend, o auto-intitulado anarquista epistemológico, em seu livro Contra o Método (1975). Pensar que existe um método capaz de produzir um pensamento único (chamado de real, ou lógico) é ir contra a diversidade e a curiosidade do próprio saber.

Mas é impressionante como os anarquistas e libertários se apegam tanto a ciência (provavelmente na falta de uma resposta melhor). Esquecem-se que a ciência também:

  1. Produz verdades imutáveis, assim como a religião;
  2. promove a segregação entre inteligentes e os ignorantes;
  3. desqualifica outros saberes diversos, populares, mitológicos, místicos, poéticos, artísticos, culturais etc;
  4. ajuda a manter as hierarquias e classes sociais;
  5. gera ferramentas de destruição, opressão e dominação em massa.

A ciência, como tem se desenvolvido, geralmente repete os modelos autoritários que o geraram e até hoje o mantém: como a burguesia, que financiou a ciência, com o objetivo de produzir dominação, e o poder econômico de modo geral.

Embora tenhamos importantes pensadores como Francesc Férrer (1859) Neil (1889) etc, na área da Educação, uma área do conhecimento conexa, até hoje ainda não li nenhum teórico contemporâneo discutindo um novo modelo de ciência.

Ciência e fé

Afinal o que é a ciência na prática? Quando penso em ciência vem logo a minha mente programas televisivos como Beakman’s World e O Professor, da TV Cultura. Lá estavam eles, caricatos, mas nos ensinando que a ciência, com suas lupas, microscópios e tabelas periódicas; nos trariam a verdade. Nos tornaria mais inteligentes (e consequentemente ricos e atraentes?).

o-professor

É difícil criticar a ciência, pois as pessoas acreditam que seus celulares e analgésicos para dor nas costas não existiriam sem o pensamento institucionalizado, suas universidades e seus laboratórios. Muitas vezes as pessoas acreditam que a sociedade moderna, ou o capitalismo ou os governos, enfim, lhes trazem todos os tipos de agrura na vida, mas não param para pensar que a ciência tem muita culpa nisso. Acreditam que a ciência é como uma faca, uma ferramenta que pode ser usada para o bem ou para o mal. Mas as tecnologias possuem discursos, e são aqueles mesmo discursos de quem as financia. Esse ponto de vista está melhor expresso em minha dissertação de mestrado que você pode ler aqui).

beakman

Mas a ciência está ai direcionando nossas vidas. A todo momento pesquisas veiculadas por canais midiáticos, replicados em redes sociais, nos dizem que devemos comer isso ou aquilo, usar tal combustível, investir em tal atitude. A verdade é que não temos nem tempo para verificar todas as fontes. Ninguém diz que vai usar ou deixar de usar tal produto porque leu uma pesquisa acadêmica. Nós acreditamos na fonte: saiu na National Geographic, no Jornal da televisão. Ficamos satisfeito com esse selo de pré-aprovação. (note que acreditar é um ato de fé e não de razão)

Mas e as grandes perguntas? Qualquer um que passe pelo meio acadêmico sabe que existem diversas linhas de pesquisas, muitas disputam entre si, algumas se contradizem, não existe homogeneidade. Como podemos saber o grau de representatividade de tal descoberta científica, qual metodologia usada, quantas fontes são discordantes? E o mais importante: quem financiou? De onde vem o dinheiro?

Quem paga a conta?

A fonte de financiamento da ciência é a mesma que financia os políticos: as grandes empresas. O que podemos esperar delas? Podemos esperar que elas sejam éticas? Quantas mortes já não ocorreram com medicamentos aprovados, que depois foram retirados do mercado?

Quem financia os congressos científicos?

Mundo sem ciência é caos?

Não estou dizendo que não deve existir ciência. Isso nem é possível. Quero apenas refletir sobre uma gama de significados que a ciência produz. Significado é poder. Sei que é possível pensar a ciência de diversas formas, cogitar a existência de pseudo-ciências ou separar etc. O fato é que na prática, no dia-a-dia, algo que chamamos de ciência nos guia, nos diz o que comer, o que fazer, a forma correta de se pensar, o que ler, no que ACREDITAR.

Sabemos também que existe uma disputa por esse termo, pois como em um debate político, cada um se baseia no “científico”, ainda que digam coisas contraditórias.

E é óbvio que, em diferente niveis, nunca conseguimos nos guiar apenas pelo científico, visto que o uso de tal discurso não impede crenças também no místico ou religioso.

No entanto, não podemos nem devemos nos desvenciliar de tudo. A própria estrutura deste texto apresenta aspectos do texto acadêmico, como por exemplo citar um Autor Famoso (com data entre parêntesis).

O mais importante é não utilizar a ciência como um meio de diminuir o ponto de vista do outro. Afinal, o que é dado como verdade hoje, pode ser revisto pela ciência como um erro. O darwinismo social, as filosofias eugênicas, como o nazismo, são fruto do radicalismo deste pensamento. Não significa algo simplista como não contrariar quem diz que a terra é quadrada.

Eugenics_congress_logo

“Eugenia é a autodireção da evolução humana”: logo da Segunda Conferência Internacional de Eugenia, realizada em 1921, retratando-a como uma árvore que reúne uma variedade de diferentes campos científicos. Um congresso, científico, financiado.

 

Os principais males desse pensamento está nos seguintes fatos:

  1. Isentarmos os pesquisadores dos questionamentos morais e éticos dos usos e finalidades de suas pesquisas;
  2. Construirmos um currículo pedagógico infantil que privilegia quase em sua totalidade o pensamento lógico abstrato, excluindo a arte prática, o trabalho com a terra, a interação com animais, as técnicas manuais etc;
  3. Aceitarmos diversas explicações sem questionamentos, por acreditar no “estabelecimento da ciência” e suas publicações científicas;
  4. Justificarmos pensamentos totaliários e segregadores, como “quem estudou mais merece ganhar mais”, “os pobres não sabem votar”, “é possível identificar psicopatas através de seu código genético”, “um presidente precisa ter diploma”, “os pobres são mais violentos porque não têm estudo” ou ainda “o problema do país é a falta de EDUCAÇÃO”.

Para ampliar a discussão

Claro que um assunto tão complexo fica impossível de ser tratado com profundidade num artigo tão pequeno.

Como mencionado acima, discutindo a questão da ideologia das tecnologias, possuo minha dissertação de mestrado PROPRIEDADE DIREITO AUTORAL e CULTURA DIGITAL.

Na questão de possibilidades para uma nova ciência, existe o interessante trabalho de Nathalia Locks, A Tese Como Obra, uma tese de doutorado proposta em formato digital. Para conferir a tese, que possui formato de blog, acesse Tese Como Obra.

O PDF do livro Contra o Método, de Feyerabend pode se baixado aqui.

 

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