Em certa linguagem de computação o cifrão é usado para indicar o nome de um valor variável, assim $variavel. Isso significa que esse palavra possui duas metades, uma é o nome que funciona como um índice, uma referência (cifrão + palavra), a outra metade é o valor variável, que pode ser qualquer valor, dependendo do que o contexto lhe atribuir.
Sentado na beira da cama, olhava a pequena tatuagem no pulso com pesada tristeza. Os traços perfeitos em um preto vivo delineavam a imagem de dois pequenos corações unidos. As vibrantes cores azul e rosa começavam separadas, cada qual em seu coração e se misturavam com perfeição, simulando um efeito de fluído, como se a água de dois rios torrenciais se encontrassem. Unidos. Mais que unidos… fundidos. Foi a palavra que disseram naquele dia:
— Uma tatoo que simbolize o nosso amor, dois corações que são um só. Fundidos…
— Fundidos e fodidos!
— Bobo. Eu não me importo com dinheiro.
— Você é o maior tesouro que existe nessa terra. E você é minha.
Passou a ponta do dedo sobre a tatuagem. Piscou os olhos e a tatuagem se tornou grosseira, opaca, simples. Fazia tempo que não via a forma original. Talvez… nem sei… muito tempo.
Pegou a caixa branca que estava ao seu lado e ficou encarando-a, segurando com as duas mãos. O design minimalista era quase etéreo. O branco pleno, levemente fosco, só era desvirtuado pela leve sombra da logomarca, que parecia levitar sobre a tampa plástica. Um círculo fino, de um preto acinzentado, com leves pontos coloridos que surgiam, como micro-arcos-íris, conforme o movimento da caixa refletia a luz amarelada do teto do quarto.
Por alguns segundos a palavra SIMBIOSE aparecia no meio do círculo, num cinza claro progressivo que em poucos segundos se desmanchava suavemente no branco.
Pensou que, apesar de óbvia, a analogia era estranha. Porque a associação simbiótica acontece entre espécies diferentes. Embora a comparação seja compreensível, e até mesmo comum, seres da mesma espécie, segundo a ecologia, estabelecem apenas relações de sociedade ou competição. Talvez a ideia fosse que a propaganda “a união perfeita entre as pessoas”, na verdade, se referia a união entre homem e máquina. Espécies diferentes. Ou complementares.
O engraçado era que isso tenha começado com o seu ronco. Só que não tinha nada de engraçado porque ele estava muito triste. Como se sua vida tivesse perdido todo o sentido. A própria mensagem da tatuagem era que estariam conectados na vida real, pra sempre, no nível do hardware. E durante muito tempo até mesmo tiravam sarro das pessoas que usavam a Simbiose. Dos amigos, foram os últimos a embarcar na novidade. A ideia lhes repugnava. Mas com o tempo, as facilidades, os benefícios e, até mesmo, a aceitação; uma hora alguém cederia. Mas tudo começou por causa do maldito ronco…
Era bem mais barato do que fazer mais um tratamento para o seu ronco noturno que, de fato, era terrível. E depois que ela conseguiu suas noites silenciosas, também experimentou os áudios de chuva, lareira, útero, canto de baleias e todas as novidades semanais. Depois disso mais uma série de benefícios que só faria sentido se ele também utilizasse. Até porque no plano família você pagava menos e ganhava mais pontos. Não precisariam mais de chave para a casa, levar carteira, usar celular, computador, agenda… tudo na nuvem e compartilhável. Tudo perfeito… era o slogan, dito em voz feminina, suave, levemente robótica, toda vez que o sistema era atualizado. Simbiose, perfect for you.
Perfeito como eram seus dias. O horário do despertador, a seleção musical até o trabalho, os pedidos para o almoço, os programas televisivos da noite, o jantar que chegava na hora.. tudo era baseado no seu perfil, nas suas preferências, nos seus hábitos, nos seus dados, na sua capacidade bancária.
Apenas parou de olhar a caixa quando passou a observar $nome na sala, em frente ao cavalete com uma tela de pintura, admirando sua obra enquanto planejava a próxima pincelada. Ela estava especialmente $qualidade1 e $qualidade2 naquela noite, sob a luz amarela e suave que dava um ar confortável à sala. Mesmo usando um pijama cinza com ar de roupa velha, ele estava perfeitamente ajustado ao seu corpo.
Com quantas pessoas ela estaria falando agora? Cinco? Dez? Cinquenta? Cem? Amigas, amantes, inteligências artificiais? Não importaria, se ele perguntasse, ela sempre lhe diria: apenas você meu amor.
O que será que ela estava fazendo de verdade? Será que estava pintando mesmo? De repente ela saiu de seu transe e notou seu olhar. Despejou-lhe o sorriso mais lindo do universo e disse: $minhaFrasePreferida.
Ele também mentiria. Por exemplo, se ela perguntasse sobre visualizar outras pessoas durante o sexo. Nunca usou? Eu… sim, mas foi apenas vendo cenas de nós mesmos. Nunca visualizei outras pessoas. Seria estranho…
Ela voltou para a pintura e ele permaneceu sentado, imóvel. Queria chamá-la, queria conversar, sentir o calor da presença e da compreensão humana. Queria desvencilhar-se dos laços da rede e cair na realidade. Queria encontrar o real e profundo significado de humano numa conversa simples e trivial.
Jogou-se de costas na cama macia. Seu corpo caiu lentamente e um grande relaxamento espalhou-se por ele. Seu corpo estava leve e distencionado, quase que se fragmentando em pedacinhos quadrados. Unidades mínimas. Bits de informação, menores que o próprio átomo. Cada pedaço seu era a afirmação máxima e também mínima da sua existência. Uma afirmação tão real e sólida, mas ao mesmo tempo vazia, há menos que uma vírgula da transformação em nada. Qual a real distância entre o zero e o um? No mínimo absoluto, Deus poderia valer mais que um?
Ser livre ou ser perfeito? Onde ela estava? Será que ela poderia juntar todos aqueles bits sobre a cama? Eram juntos ou separados? A fusão nuclear gera mais energia do que consome, mas quem pode controlá-la?
Seus pedaços se espalhavam pelo ar e logo começou a sentir o contato de tudo. Do chão, do teto, das paredes, do cachorro, da parede da vizinha do lado de cá e dos vizinhos do lado de lá. Seu eu estava cada vez mais em tudo, espalhando-se como um grande micélio, uma grande rede mundial. Se ele não existisse, será que ela lembraria dele? Ouviu de longe ela chamando: $nome! $nome! Mas ele não conseguia mais lembrar se $nome era seu nome.
Você já leu os textos anteriores desta série?
Erick e o jardim
Nosso amigo Erick adora aprender com o jardim. Não que seja ruim aprender com os outros, obter novas informações e ensinamentos, mas parece que também é possível aprender com o silêncio das plantas.Olhando para o jardim iluminado pelo sol do meio-dia, Erick pensava...
Erick e o tudo e o nada
Um texto na madrugada... sobre um pouco de tudo. Poderia uma pessoa se sentir um nada? Não, acho que seria tão impossível quanto se sentir um tudo. Um dia vou escrever um livro sobre como tudo começou do nada, pensou Erick, enquanto escolhia no programa qual música...
Erick e a solidão
Será que a solidão realmente tem a ver com vazio e silêncio? Erick sempre valorizou a solidão porque no silêncio conseguia ouvir melhor os barulhos da sua cabeça. Ainda que gostasse das conversas longas, das festas ou da mesa do bar, através de momentos solitários...